quinta-feira, 25 de maio de 2006

LEGIÃO DE IDEALISTAS versus LEGIÃO DE HIPÓCRITAS


Passei dias lendo mensagens eletrônicas: manifestações, repúdios, solidariedade e indignação. Calei-me. Palavra alguma tem o condão de consolar uma alma. Há momentos em que a inutilidade reside nas palavras. Enquanto lia e excluía (e devo confessar, às vezes apenas excluía) as mensagens aludidas, uma palavra se infiltrava em minha mente: A palavra "hipocrisia".
Sociedade hipócrita que chorou lágrimas de carpideiras. Sociedade que sempre desprezou a Polícia. Policiais eram tidos como violentos, corruptos, rudes, incultos e inúteis. Sociedade que defendeu Barrabás inúmeras vezes enquanto vilipendiava seus salvadores, seus anjos protetores. Anjos que saem de seus lares sem certeza de regresso; que deixam filhos, mães ou cônjuges amados esperando angustiados.
Essa mensagem não tem a intenção de emocionar ou "tocar o coração", quem me conhece sabe que não sou adepta de tais artifícios; escrevo tão somente para me manifestar da forma que melhor sei fazer: usando a palavra.
Foi um final de semana de guerra e dor. Mas para quem?! Circularam centenas de e-mails e o mais absurdo é que algumas pessoas usaram de um momento tão dramático e doloroso para fazer política; para defender seus partidos ou candidatos. Lamentável o grau de indignidade a que uma nação pode chegar. Há tempo para todas as coisas, já escreveu Salomão; o final de semana era um tempo de silêncio. Tempo de olhar para os homens além das camisetas pretas, das balaclavas, das boinas, dos quepes, das fardas, das divisas, das patentes, dos coturnos e das armas. Tempo de olhar para o homem que sofria em silêncio a dor da perda de um companheiro. Tempo de saudade. Era tempo de pensar em cada família, em cada mãe, cônjuge e filhos dos guerreiros feridos - mortalmente feridos. Guerreiros que se mantiveram em pé até o último momento - como é natural em heróis. Guerreiros que viveram (e infelizmente morreram) por um ideal, guerreiros fiéis à consciência, à lei e à missão que receberam. Missão de defender, até o último suspiro, uma sociedade indigna deles.
Sociedade hipócrita! Hipócritas que amanhã novamente vilipendiarão seus heróis.
O Estado de insegurança é conivente com o estado de descaso. As autoridades aprenderam com louvor a lição de sugestionar as massas e a arte da manipulação. As mãos que empunham canetas para formular leis lenientes também estão manchadas de sangue inocente.
Malditas sejam as leis que ultrajam a moralidade e a dignidade, malditas sejam as mãos que empunharam (e empunham) armas para ferir justos, malditos sejam os animais que celebraram aquelas mortes; todavia, bendito seja o solo regado pelo sangue heróico desses homens. Não apenas os homens que tombaram nesse final de semana, mas em todos os anteriores a esse e em todos os posteriores. Que esse sangue faça brotar sementes - sementes de justiça. Que nasça uma nova sociedade; sociedade solidária não apenas quando está revoltada, mas principalmente quando não está, e não está porque homens e mulheres estão combatendo anonimamente por ela. Homens que recebem soldos miseráveis para morrer.
Seus passos deixam, fundo na terra; suas marcas deixam, indeléveis em nós. Ficamos mais pobres, mais fracos e menores.
Hipócritas! Que buscam notoriedade quando deveriam buscar soluções. Hipócritas que fazem política quando deveriam fazer orações. Hipócritas que falam sem parar quando deveriam calar e sentir a dor verdadeira que estamos sentindo. Hipócritas.
Há quem diga que a mídia e a sociedade finalmente reconheceram o valor da Polícia. Hipócritas! Até quando? Até o próximo escândalo político? Até começarem campanhas - e usarem esse fato lamentável como trampolim? Até o próximo jogo de futebol? Até que a sociedade, induzida pela mídia, considere "excesso" a atuação da Polícia e se compadeça, novamente, de Barrabás? Hoje pululam poesias em homenagem à Polícia, mas até quando?!?!
Todos os dias um Policial tomba combatendo o crime - anônimo como esses tantos anônimos que tombaram de uma única vez. O que choca a sociedade não é a morte nem a dor. São os números. Destarte, também multiplicaremos por mil e um cada Policial, desde a Força Pública, que não desertou, combatendo a solidão, o frio, a madrugada, o silêncio, o mal e, por fim, a morte. Não morreram, apenas partiram antes.
Hipócritas! Também eram suas as mãos que seguravam as armas que mataram os heróis. Finalizo.
(Dáuvanny Costa, após os horrores de maio de 2006)

sábado, 13 de maio de 2006

Que a dor de hoje perdure

Estou indignada. A rua de minha casa está bloqueada. Os ataques à Polícia não param de acontecer.
Estou indignada.
Estou indignada por 30 valentes tombarem como mártires; por sentir a dor de suas famílias, por chorar com eles, por desmoronar.
Minha indignação, entretanto, NÃO ESTÁ atrelada a esse fato - de hoje; está atrelada à falta de moral de homens corruptos e desavergonhados que roubam cotidianamente nossas esperanças e nossas certezas.
Todos os dias um bravo tomba no cumprimento de seu dever - e isso, por si só, já deveria nos indignar e nos diminuir. Entendo e compartilho a indignação que acometeu a população hoje; mas deveria ser indignação de TODOS OS DIAS, de todas as perdas, de todas as injustiças. Deveria ser, pois toda pequena dor é a representação da dor do mundo.
Não estou em segurança se meu semelhante está inseguro. Não estou feliz se meu semelhante está infeliz. Não estou forte se meu semelhante está fraco. Não sou justa se ainda há injustiça. Não sou boa se ainda há maldade.
Para a Imprensa e o Governo são somente números. Todavia, não para nós. Não para quem está 'do lado de cá'; quem sente as dores de feridas abertas, porque, de fato, lágrima não cicatriza.
Minha indignação é tristeza mascarada, é dor e impotência diante de situações tão lamentáveis. A tristeza me domina, tristeza de todos os choros, de todas as lágrimas, de todas as perdas.
Tristeza porque amanhã se contabilizam números e as famílias nunca mais se encontram, nunca mais serão as mesmas; e, doravante, tantas vezes se calarão sem forças, deixando as lágrimas rolarem.
Tristeza porque quase não vejo diferença entre os bandidos que disparam armas e os bandidos que criam leis lenientes.
Que a dor de hoje perdure cada vez que a vida de um cidadão decente seja ceifada (e isso acontece todos os dias). Que a dor de hoje não termine amanhã.
Cobremos soluções, dignidade e respeito.
Ora me calo porque também preciso deixar rolar as lágrimas. De ontem. De amanhã. De sempre.
(Dáuvanny Costa)

Versão Italiana - publicada no Site Italiano "O ponto": Sono Indignata

segunda-feira, 8 de maio de 2006

Só hoje

Acordo de um sono que não dormi.
Entre tantos livros espalhados sobre a mesa,
perco-me num desejo insano de lê-los,
sem lê-los.
Cada livro me olha
e solto um impropério erguendo-me.
Não quero ler.
Hoje meu pensamento quer descansar.
(Dáuvanny Costa)

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Obrigada, senhores parlamentares!

Obrigada, senhores parlamentares, obrigada!
Obrigada por nos mostrar a diferença entre viver e sonhar; e hoje vivemos e já não sonhamos.
Obrigada por 500 anos nos emudecendo, nos amordaçando e atando nossas mãos, que hoje, atrofiadas, já não lutam. Vocês nos ensinaram passividade.
Obrigada pelo (in)Digesto exercício da cidadania, em que comparecemos obrigados. Muitos obrigados!
Obrigada pelo AI 5; e agora, pelo AR 15; já nos sentimos encapuzados, seqüestrados, presos e vítimas dessa democracia; isso nos ensina mansidão.
Obrigada por permitirem que os melhores, entre nós, sejam, de nós, furtados, isso nos livra do egoísmo (e da dignidade).
Obrigada pela enfermidade da saúde pública, assim sabemos que não somos os únicos a padecer sem remédio.

Obrigada, senhores parlamentares, obrigada!
Obrigada pela banalização da violência, que nos leva a nos culparmos, e não a vós. Isso nos ensina a humildade.
Obrigada pelos direitos humanos, que não são para os humanos direitos, e isso dizima nossa moral, nos ensinando que ser honesto, nesta terra, nada vale.
Obrigada pelo grande amor que têm aos animais, pois nos tornam cães ou asnos, nos fazendo quase esquecer que um homem sem direito não é indivíduo.
Obrigada pelos salários que nos pagam; e sempre acabam antes de o mês ter terminado. Nos ensina a economia.
Obrigada por se preocuparem tanto com nossas crianças, a tal ponto de não puni-las quando agem mal.
Obrigada por tirarem os melhores anos de nossas vidas, nos furtando do saber; e terem feito de nós corpos sem alma. Isso nos ensina a não vivermos.

Obrigada, senhores parlamentares, obrigada!
Obrigada pela fome numa terra tão rica, nos ensinando que as aparências, realmente, enganam.
Obrigada pelo “impeachment”, em que fomos os heróis, os ‘caras pintadas’... nos ensinou a ilusão do poder.
Obrigada por nossa ansiedade e agonia enquanto nossos amores não voltam para o lar; e enquanto andamos de um lado para o outro assustados, isso nos ensina a esperar.
Obrigada pela liberdade nos programas de televisão, onde cada um diz o que quer, e nossos ouvidos viram penicos. Nos ensina a tolerância.
Obrigada pela mentira bem contada de que somos os donos do poder. Obrigada por essa injeção de (pseudo) ânimo no nosso povo.
Obrigada por divertir este mesmo povo, nos dando festas e feriados (que se acabam) e voltamos à vida normal, com mais dívidas e dores de cabeça.

Obrigada, senhores parlamentares, obrigada!
Obrigada por esse sentimento de indignação que nos invade, nos transformando quase nos animais que querem que sejamos. Ah! Isso sim nos torna gente!
Obrigada pelas pizzas que arrotamos (mas não comemos) a cada CPI armada; a cada novo escândalo; mas por favor, manda de calabresa com suco da próxima vez, pois estamos cheios de frango e de coca. Ah! E menos cebola, não queremos mais chorar.
Obrigada pelo assassínio da nossa língua, quando nos dizem que ‘a nível de’ Brasil, a inflação é ‘imexível’. Nos lembra que estamos envelhecendo.
Obrigada por roubarem nossos moços, nossos filhos, nossos cônjuges, nossos pais, nossos irmãos, nossos amigos. Obrigada por nos roubarem o direito à fé!

Obrigada, senhores parlamentares, obrigada!
Obrigada pelos vultosos aumentos de vossos salários; faz-nos sentir patrões generosos.
E... obrigada, finalmente, por nos fazerem perder tempo escrevendo sobre vós. Isso nos dá um sentimento de valor. De importância e de urgência.

O que é importante?
Vida, comida, casa, segurança, emprego, educação, saúde. E três coisas que nem todos vós conheceis: moral, dignidade e cidadania.

O que é urgente?
Que Vossas Excelências (em maiúsculo, pelo respeito) cumpram seus papéis de mandatários, nos ouvindo.
E, por favor, desculpem-nos por este cansaço e desolação.
(Dáuvanny Costa)

Aniversário - de Pessoa e meu

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!... (Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos. DURO. Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!..."
(Aniversário, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)
Grifos meus.

Aniversário é qualquer dia em que você se lembra de prosseguir.
Hoje já não faço anos. Duro... e agradeço a todos os que me ajudam nessa jornada, de algum modo - às vezes apenas com a esperança.