sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Santo de Casa

O ser humano tem o dom de procurar sombras quando a luz está à frente, embrenhando-se pelos caminhos do amor ao que não conhece. O dom de amar o inatingível artista de tv e aplaudir suas tolices. O dom de aplaudir a celebridade instantânea de rosto bonito e cabeça vazia. O dom de admirar os sem-religião, sem-moral e sem-temor. O dom de se expressar de forma magnânima enquanto grita "ele merece" a alguém que nunca havia visto antes e que lhe é apresentado por um animador de auditórios, que, em desenfreado desespero por números, atua como salvador.
O ser humano se deixa seduzir pelo brilho da moda, brilho que não acende nada de verdadeiro em sua humanidade, antes a deslumbra numa alegria cega e letárgica que nunca poderá transformar seu ser. Admira o desconhecido, aplaude o visitante que chega sem licença, louva a imbecilidade das personalidades descartáveis. Segue padrões ditados por pessoas prestigiadas como celebridades, mas moralmente enfermas.
Enquanto isso, ignora as celebridades nas sombras e buracos do mundo. Celebridades que celebram mistérios desconhecidos. Celebridades que jamais foram entrevistadas em programas de televisão. Célebres por ser quem são, célebres cuja celebridade está na luta constante pela vida que não podem negar em si mesmas.
Célebres. Mães abandonadas que ousaram ser mães e pais sem declinar de sua luta.
Pais que ousaram, da mesma forma, também se converterem em mães, celebrando em si mesmos o milagre de semear e irrigar. 
Pais e mães que semeiam e parem com o coração na sublime missão de criar filhos não havidos de si.
Religiosos que creem na religião sem descrer do Evangelho da graça.
Advogados que não se rendem às facilidades da profissão, insistindo na missão que os fez trilhar caminhos ladeados de dores e sacrifícios.
Juízes que não relativizam a aplicação da lei em nome de uma suposta 'justiça social'. 
Médicos exaustos que insistem na capacidade sobrenatural de renovarem a vida.
Cristãos sedentos pela fonte da Água Viva que brota do trono celestial.
Intelectuais desanimados pela agrura do zelo, mas constantes nos propósitos escolhidos por suas almas.
Célebres. Merecedores de celebrações. No entanto, a humanidade em nós, que nos afasta da inexprimível sublimidade do divino, nos faz desprezar o que conhecemos, na tentativa de fugir da graça.
O que faz um homem já beirando os cinquenta anos voltar à escola para terminar o ensino fundamental? O que faz uma mulher lavar roupas para fora para alimentar seus filhos? O que faz um professor dedicar horas de seu tempo a ensinar valores? O que faz uma mulher perseguir um sonho mesmo que tudo pareça contra ela? O que faz um Policial se entregar à morte protegendo um ideal? O que faz um cristão não se render às armadilhas da estrada? O que faz uma mulher ser fiel a um homem e à sua memória, quando ausente dela? O que faz uma mãe arrumar a cama do filho que não voltará? O que faz uma viúva prosseguir e sorrir mesmo com a dor paralisante de sua alma? O que faz um homem trabalhar honestamente mesmo com todos os exemplos de vitória barata? O que faz um trabalhador ser esmagado por impostos e não renunciar à dignidade do trabalho? O que faz um homem escolher uma só mulher para amar e a ela se entregar sem reservas e sem receios? O que faz uma esposa deixar seu lar para limpar e cuidar do lar de outrem? O que faz um homem ser um homem?
O que faz essas coisas maravilhosas acontecerem é o milagre da graça; a esperança da glória; a poetização do divino em nós; a celebração que faz de nós celebridades anônimas.
Ainda assim, mesmo com tantos exemplos de maravilhosa graça se derramando no homem, esse prefere se admirar do pouco, do pequeno, do medíocre, banalizando a excepcionalidade do que é comum, do que é familiar, de seres imperfeitos que tentam alcançar a perfeição com gestos simples e tantas vezes não notados e mal interpretados. A familiaridade retira de nós a amplitude da maravilha: "Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Judas e de Simão? E não estão aqui conosco suas irmãs? E escandalizavam-se nele. E Jesus lhes dizia: Não há profeta sem honra senão na sua pátria, entre os seus parentes, e na sua casa" (Marcos 6.2-4).
Isso é a banalização da maravilha. O homem se negando a admirar o que lhe é familiar. Era inequívoca a maravilha que se projetava à frente daquelas pessoas, na figura de Jesus, mas Ele era "apenas" o carpinteiro, o vizinho, o familiar e o comum. A familiaridade que destrói e corrompe. A familiaridade que evita a graça que transborda do comum, do irmão, do vizinho, do amigo, do cônjuge.
Os olhos se perdem nos talentos imaginados no outro desconhecido. Assim, admira-se a devoção do marido da outra, a beleza da mulher do outro, a inteligência do irmão do amigo, a sabedoria do pregador que nem sabemos pronunciar o nome. Para nós, o milagre não pode nascer ao nosso lado, a graça não pode ser derramada sobre alguém que conhecemos e sabemos onde vive. Para nós, a sabedoria que vem do alto não paira naquele que convive conosco.
Bem-aventurados os que se maravilham do comum; que aprendem a admirar a santidade de seu irmão, a fidelidade de seu cônjuge, a beleza de seus filhos, a inteligência de seu amigo, a sabedoria de seus pais, a honestidade de seu igual.
Bem-aventurados os que sabem que negar a maravilha que há no nosso igual é negar a graça.
Bem-aventurados os que não resmungam que "santo de casa não faz milagre"
(Dáuvanny Costa)