terça-feira, 11 de abril de 2006

A ciência das crianças

Sempre que convidada a ministrar uma palestra, penso: “Que tenho a dizer? Convidarei um dos 'meus' bebês para substituir-me. Há mais ciência nas crianças”.
Imagino o Guilherme, com sua "grande" experiência - de cinco anos - dizendo: "Tia Dáu, pisei na pedrinha, a pedrinha rolou; pisei no coração, ele se apaixonou por você". Mestre em comunicação. Articulador das palavras. Derreto-me.
A Giovana, já mais "madura" em argumentação - do alto de seus oito anos - dispara, despretensiosa: "Te amo do tamanho da terra até o céu, tia". Ponto. Argumentar mais o quê?! Essa eu perdi. Ante tal declaração, as colocações pronominais perdem o sentido. Relevo a próclise. Os abraços da Graziela abraçam-me a alma, enquanto grita com todas as forças possíveis de seus jovens pulmões de bebê: “Eu te amo muuuuuuito!!!!”. Empatamos. Amo também. E amo mais.
Há também as questões. Ocorre-me, agora, aquela proposta pela Emanuely, que em seus três anos, já formulava questões intrincadas: "O que o tomate foi fazer no banco?" Desarma-nos em gargalhadas. 
Algumas já cresceram. São crianças em adultos. A embalagem mudou, mas o conteúdo permanece (espero sejamos todos assim). Olho para a Emily e ainda posso ver a criança em seus olhos, tentando se desatar das coisas de criança; aflorando para a vida adolescente que começa. Canto com o poeta: “Emily, hoje você faz treze anos (...)”; não é possível pedir para não crescer; hoje você faz treze anos e não posso deter o tempo, apenas orar para que Deus abençoe sua estrada e firme seus passos no caminho que é dEle.
Algumas dessas crianças são mais sisudas, introspectivas, agastadas; primeiro observam. Digam-me se isso não é sabedoria? São audiência para qualquer platéia exigente. São Davi e Jônatas - juntos. São o Jesus menino rodeado de doutores. 
Eu? Oras! Sou um poço de incertezas. O advérbio "talvez" - que amo - é minha única ciência. Sou circunstâncias, como escreveu Ortega Y Gasset. Eles não: são pureza e certeza. São mais reais. Aprendi a olhar a vida pelos olhos marejados de quem procura respostas; eles ainda observam-na pelos olhos inocentes de quem tem as respostas. Respostas para tudo. Respostas que não respondem nada - é verdade; mas que conseguem a coisa mais difícil: arrancar um sorriso espontâneo.
Crianças estão sempre a surpreender-nos. Arrancam-nos da tribulação de vidas ocupadas para nos mostrar que sorrir é o melhor remédio e amar é a melhor escolha. Escolha que implica renúncia a nós mesmos.
Eu estudo, leio, viajo, discurso, ouço, defendo, escrevo, convenço, e ainda assim tenho sempre muita coisa para aprender. Eles? Só vivem e amam. Essa é sua ciência.
Alguém pode argumentar que amor não é ciência. Lamento. Não posso explicar nada para adultos. Não tenho paciência para tanto (minha alma, nesse ponto, teima em ser criança). O Pequeno Príncipe, de Exupéry, tem razão: "As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar a toda hora explicando". Bem, minha esperança então desvanece, porque noto, em tempo, que eles não farão palestras para adultos. É melhor me armar (ou seria desarmar) e ir.
O doze das crianças só ocorre uma vez por ano. Depois, o clima de festa cede lugar à monotonia e às ocupações cotidianas; mas elas continuam presentes, esperando um olhar mais demorado, esperando que olhemos para elas com olhos de sentir, com aquele olhar que olha além do que pode ser visto. Elas continuam presentes: traquinas, levadas, tímidas, desconfiadas, ingênuas, dependentes; esperando, todas elas, apenas nosso olhar de aceitação. Esperando ser amadas. Em todos os dias e não apenas em um dia de outubro. Dia que termina cedo.
Agora preciso aprender a não perguntar tanto ou eles podem acabar perdendo a paciência comigo...
(Dáuvanny Costa)

domingo, 9 de abril de 2006

Quero e não quero

Não acredito mais na igreja. Estou separada dela. Estar "separado" da igreja, porém, não é estar separado de Cristo (mesmo porque Cristo não está na igreja). Meus olhos permanecem no Autor e Consumador da minha fé; mas já saíram da igreja há muito tempo. Em momento algum devemos pensar que a igreja representa o Senhor. Indigno-me. Indigno-me, contudo, com essa "igreja" venal, inconsequente, irresponsável, mercadejante, que vende a fé acenando com promessas mirabolantes de cura e prosperidade; quando Ele, de fato, nos ensina a carregar cruzes e renunciar a nós mesmos.
Paradoxos do presente século.
Estou cansada da igreja. Igreja que não salga. Descri dela como descreio do homem (homem aqui entendido como ser humano, por óbvio). Todavia, quanto mais estou em silêncio, mais me torno íntima do Senhor. E quanto mais busco a Deus, se torna inevitável: tenho de estar longe dos homens - que têm ofício de sal e não salgam, que pregam mais a si mesmos do que a Cristo.
Estamos vendendo a alma - contraditoriamente em nome de Deus. Tempos temerosos. Tempos de lamentações e, como meu profeta preferido (Jeremias) eu lamento. Lamento que não conheçamos a nossa alma, porque somos guiados pelos sentidos corporais; não entendemos o que é espiritual e vendemos a alma tão barato. Como escreveu Antônio Vieira devemos "aprender sequer do demônio a avaliar e estimar nossas almas" (Sermão das Tentações).
Os discípulos achavam que Jesus era o ‘salvador da pátria’ e os judeus O amaram e O seguiram por causa disso. Ele, pensavam, os libertaria da opressão de Roma, assim como havia libertado os seus pais da opressão do Egito. Antes, escravos do faraó; agora, escravos ainda. Escravos dos tributos, de César e da lei.
Mas Jesus não agiria assim! Ele não veio para isso.
Eles queriam vingança e Deus queria amor.
Eles queriam poder e Deus queria obediência.
Eles queriam libertação política e Deus queria libertação do pecado.
Eles queriam guerra e Deus queria a morte. Para vencê-la e ganhar a vida.
Quando descobriram que o reino de Jesus conduzia ao sofrimento, esconderam-se. Não era um trono que esperava por Ele. Era uma cruz. E assim é a igreja de hoje.
Dois milênios e ainda se procura o mesmo Jesus. O Jesus dos milagres.
Uma das coisas que Dostoiévski tem como objetivo mostrar em Os Irmãos Karamazov (a respeito do Grande Inquisidor) é que o paternalismo pode propiciar as condições de liberdade, mas pode, também, retirar a mesma liberdade: "Vê aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão".
A igreja não adora mais o Abençoador, adora as bênçãos. Estou separada dela. Minha fé é maior.
Fé esta que não está presa a promessas e milagres. Está presa com Ele; ainda que Ele me mate Nele esperarei. Faço minhas as palavras de Jó. Faço minhas as minhas palavras.
(Dáuvanny Costa)