domingo, 26 de fevereiro de 2006

Que tal um café?...


Um café encorpado e meio amargo serve para me despertar numa noite solitária, e me fazer andar pela casa segurando entre os dedos trêmulos aquela xícara azul fumegando, e quando me sento à mesa e deposito a xícara sobre ela, é como se me desligasse de mim mesma. Nesse gesto noto a inverossímil relação entre mim e a xícara azul.
Coloco os óculos e abro todos os livros que tenho à minha frente: Leis, doutrinas, jurisprudências. Passo as mãos pelo rosto, cansada, afasto a mecha que caiu sobre meus olhos que estão fitos em algum lugar além dos livros. Levanto os olhos - não há concentração - e deparo-me com a xícara azul à minha frente, esfriando, silenciosa, confidente, complacente. Toco-a lentamente como se buscasse digitais; nem percebo que essa xícara é um poço onde afogo minhas lembranças.
- 'O que será que o relator quis dizer nesse acórdão?'...Sorrio bebendo cada linha da decisão do Tribunal. Sem bisturi, sem cinzel, sem pincel, sem prancheta. Meu instrumento de trabalho é a caneta - azul. Mas sem a xícara a inspiração não vem, não há feeling. O líquido negro na xícara azul me absorve. Tiro os óculos; levanto-me. Olhando pela vidraça vejo a chuva, tão solitária quanto eu, caindo na rua deserta num dia cinzento. De repente me dou conta de que uma xícara de café é apenas um líquido negro.
Uma xícara de café só é realmente saborosa quando acompanhada de um olhar afável, de um sorriso doce, de uma conversa sobre amenidades, sem aquele peso de decisões e julgamentos, sem crises de existência ou a timidez do medo de mostrar quem somos.
Uma xícara de café é saborosa quando podemos olhar o infinito azul sem preocupações, sem agenda, sem horários, sem fardos ou culpas.
Uma xícara de café é saborosa quando desligamos o celular, respiramos fundo, quem sabe tiramos os sapatos, sorrimos sem graça, nos damos às mãos, afagamos o rosto gentil que nos faz companhia...
Ah!... Que tal uma xícara de café?!...
(Dáuvanny Costa)

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